Lá
estava eu, com olhos e respiração de criança apreciando aquela borracha. Não
era qualquer borracha, era uma dama de espadas, linda. E como eu estava na
alfabetização, apagar muitas vezes faria parte da minha construção.
Pedi
permissão para usá-la, somente durantes as tarefas daquele dia, ali mesmo, na
sala de aula. Clarice riu pra mim, e entendi que isso era permissão. Sentindo-me
a vontade então, pegava a borracha de vez em quando somente pra cheirar. Desde
menorzinha, eu adorava coisas de escola: lápis, borrachas...não diferenciava
menino de menina. Se fosse lápis, borracha, caneta ou caderno, eu amava.
Desse
dia em diante, eu sentava na mesma mesinha que a Clarice na hora de fazer as
tarefas na escola. Cabiam quatro crianças, sentavam quatro crianças. Mas
somente eu compartilhava a dama de espadas. A Clarice permitia, sempre.
Uma
tarde, tomei um susto. O que a dama de espadas estava fazendo na minha bolsa, em
minha casa? Eu tentava entender, lembrar, refazer caminhos, mas não adiantava.
Minha mente não havia registrado o momento que ela resolveu ser minha, mesmo
que temporariamente.
Senti-me
mal, juro. Mesmo sem perceber, eu havia tirado algo de alguém. Às vezes, tirar
algo de alguém é bom. Por exemplo, arrancar com toda a força um sorriso. Mas ao
invés de um sorriso, eu havia simplesmente e de maneira negligente, retirado um
objeto da Clarice. O que ela faria agora, sem a sua Palas Atena?
Devolver
a divindade seria um fato futuro, sem dúvida. Mas agora eu precisava de uma
estratégia. Não poderia simplesmente chamar a Clarice em um canto e pedir
desculpas. Poderia parecer com coisas que não foram realidade. Não queria me
acusar de algo que não fizera. Maldade com arrependimento, não. Descuido! Não
deveria então se parecer com nada feio, sejamos justos. Resolvi que teria muito
cuidado com coisas que não se consertam nunca mais na vida. Um mal entendido
poderia arranhar tudo.
Aliviou-me
o pensamento de desfazer o ocorrido no dia seguinte. Tanto que ao ir fazer as tarefas
de casa naquela mesma tarde, resolvi usar um pouco a dama de espadas. Que mal
teria? Usei-a, sem culpa, tantas vezes quantas foram necessárias. Eu ainda
estava na alfabetização.
Ao
terminar as tarefas, cheirei mais uma vez a borracha antes de guardá-la. Neste
exato momento, uma sirene alta de polícia. Desespero de criança quase sempre
resulta em lágrimas. Não foi diferente comigo. Não precisava ter chamado a polícia,
eu ia devolver Atena, desde sempre. Nunca tremi tanto, nunca sofri tanto. Não
durou nem um minuto e a sirene foi ficando fraquinha, baixinha. Haviam passado
direto, tomado outro rumo, seguido em frente. Por certo não encontraram a minha
casa.
Ao
chegar à escola na manha seguinte, a Clarice já estava. Alívio! Tudo ia mesmo
se resolver naquele dia seguinte. Fiz questão de puxar assunto só pra me
certificar de que ela não conseguia ler o que estava escrito na minha testa.
Ela ainda estava amável, eu ainda tinha tempo de agir. Esperei a hora do
recreio com alguma angústia, a fim de executar logo a minha estratégia tão bem
intencionalmente elaborada.
Neguei todos os convites de partilha de lanche,
esperei que todos saíssem da sala de aula, e tremendo um pouco, bem ciente de
que tinha um coração ativo, palpitante, entrei no corredor onde eram guardadas
as bolsas escolares. Lá estava eu, com olhos e respiração de criança devolvendo
aquela borracha. Não era qualquer borracha, era uma dama de espadas, linda.