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segunda-feira, 11 de junho de 2012

A Dama de Espadas


Lá estava eu, com olhos e respiração de criança apreciando aquela borracha. Não era qualquer borracha, era uma dama de espadas, linda. E como eu estava na alfabetização, apagar muitas vezes faria parte da minha construção.

Pedi permissão para usá-la, somente durantes as tarefas daquele dia, ali mesmo, na sala de aula. Clarice riu pra mim, e entendi que isso era permissão. Sentindo-me a vontade então, pegava a borracha de vez em quando somente pra cheirar. Desde menorzinha, eu adorava coisas de escola: lápis, borrachas...não diferenciava menino de menina. Se fosse lápis, borracha, caneta ou caderno, eu amava.

Desse dia em diante, eu sentava na mesma mesinha que a Clarice na hora de fazer as tarefas na escola. Cabiam quatro crianças, sentavam quatro crianças. Mas somente eu compartilhava a dama de espadas. A Clarice permitia, sempre.

Uma tarde, tomei um susto. O que a dama de espadas estava fazendo na minha bolsa, em minha casa? Eu tentava entender, lembrar, refazer caminhos, mas não adiantava. Minha mente não havia registrado o momento que ela resolveu ser minha, mesmo que temporariamente.

Senti-me mal, juro. Mesmo sem perceber, eu havia tirado algo de alguém. Às vezes, tirar algo de alguém é bom. Por exemplo, arrancar com toda a força um sorriso. Mas ao invés de um sorriso, eu havia simplesmente e de maneira negligente, retirado um objeto da Clarice. O que ela faria agora, sem a sua Palas Atena?

Devolver a divindade seria um fato futuro, sem dúvida. Mas agora eu precisava de uma estratégia. Não poderia simplesmente chamar a Clarice em um canto e pedir desculpas. Poderia parecer com coisas que não foram realidade. Não queria me acusar de algo que não fizera. Maldade com arrependimento, não. Descuido! Não deveria então se parecer com nada feio, sejamos justos. Resolvi que teria muito cuidado com coisas que não se consertam nunca mais na vida. Um mal entendido poderia arranhar tudo.

Aliviou-me o pensamento de desfazer o ocorrido no dia seguinte. Tanto que ao ir fazer as tarefas de casa naquela mesma tarde, resolvi usar um pouco a dama de espadas. Que mal teria? Usei-a, sem culpa, tantas vezes quantas foram necessárias. Eu ainda estava na alfabetização.

Ao terminar as tarefas, cheirei mais uma vez a borracha antes de guardá-la. Neste exato momento, uma sirene alta de polícia. Desespero de criança quase sempre resulta em lágrimas. Não foi diferente comigo. Não precisava ter chamado a polícia, eu ia devolver Atena, desde sempre. Nunca tremi tanto, nunca sofri tanto. Não durou nem um minuto e a sirene foi ficando fraquinha, baixinha. Haviam passado direto, tomado outro rumo, seguido em frente. Por certo não encontraram a minha casa.   

Ao chegar à escola na manha seguinte, a Clarice já estava. Alívio! Tudo ia mesmo se resolver naquele dia seguinte. Fiz questão de puxar assunto só pra me certificar de que ela não conseguia ler o que estava escrito na minha testa. Ela ainda estava amável, eu ainda tinha tempo de agir. Esperei a hora do recreio com alguma angústia, a fim de executar logo a minha estratégia tão bem intencionalmente elaborada.

Neguei todos os convites de partilha de lanche, esperei que todos saíssem da sala de aula, e tremendo um pouco, bem ciente de que tinha um coração ativo, palpitante, entrei no corredor onde eram guardadas as bolsas escolares. Lá estava eu, com olhos e respiração de criança devolvendo aquela borracha. Não era qualquer borracha, era uma dama de espadas, linda.

4 comentários:

  1. Muito bom, Maria Flor! :) deu até para ouvir a sirena da polícia... tamanha realidade transmitida!!!

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  2. Nossa... o desespero pareceu real de tao bem escrito... transmite muita emoçao.

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  3. Muito lindo! De uma leveza e transparência que encantam e fazem sentir cada pausa no pensamento. Que emoção!

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